AZAGAIA,
Esquadras
e Julgamentos
Aos 29 de Agosto de 2011, fui
detido na 12ª Esquadra da Polícia da República de Moçambique, depois de ter
sido bruscamente abordado por agentes desta instituição, que se dirigiam ao
campo de futebol 1 de Maio, com o propósito de garantir a segurança do jogo que
decorreria naquela recinto. Eventualmente pelos vidros fumados e por falta de
faróis frontais, roubados naquela mesma semana numa das principais avenidas da
cidade de Maputo, fomos então interpelados na viatura conduzida por meu colega
de trabalho Edson da Luz, que nos conduzia a caminho da preparação de mais um
concerto musical. AZAGAIA ia subir o palco.
Sendo abordados logo apriopri como
suspeitos, sem possibilidades de identificação e diálogo, após verificada documentação
do carro e condutor, fomos revistados em público e à luz do dia, num
entroncamento do bairro da Maxaquene, de estrada batida e passagem para apenas
um carro de cada vez.
De meu bolso saiu, entre outros
pertences, um embrulho contendo cannabis sativa, em quantidades posteriormente
mensuradas em 0,8 miligramas, que nos condicionou à situação de criminosos,
segundo a Lei da República moçambicana. Desde o primeiro momento, foi assumida
por mim como de uso pessoal.
Ao pagamento informal pedido por
dois agentes daquela patrulha para soltura imediata, recusamos sem hesitação,
após ter sido exposto nas vielas do bairro até ao recinto do campo, algemado
nas traseiras da carrinha da Polícia.
Recusando continuamente a extorção,
seguimos para a 12ª Esquadra, conduzidos por um dos agentes da Polícia, já no
carro de Edson. Entregues às instâncias daquela unidade, foi-nos anunciada a
soltura, após registo da ocorrência. Em, fase final desse registo, surgiram
dois indivíduos sem qualquer uniforme e com voz de commando sobre o responsável
máximo da Esquadra, que sem se identificarem colocaram 3 a 4 perguntas e deram
ordem de prisão. Assim, já com 1 orgão da imprensa no exterior do edificio,
fomos conduzidos e seguidos para a sede da PIC e posteriormente para a cela da
6ª Esquadra da Cidade de Maputo, onde permanecemos por 2 noites.
Durante aquele fim de semana a
mídia tinha sua manchete anunciando o cantor AZAGAIA como consumidor, portador
e traficante de drogas.
Após 2 adiamentos do julgamento
marcado para 20 de Outubro, 3 meses depois, um por falta de notificação de
advogado de minha defesa e outro por falta de notificação dos agentes da
Polícia que nos detiveram, fomos sentenciados eu, a 6 meses de prisão,
substituível por multa e taxas judiciais equivalentes a aproximadamente 14 mil
meticais e Edson da Luz, a seguir em
“paz e liberdade”.
Do auto da acusação não consta em
momento nenhum, nem o pedido de suborno por agentes do Estado, nem a ordem de
prisão arbitrária por agentes superiores não identificados, como assim
declarado à PIC e Ministério Público à saida do cárcere. Da sentença não
constam igualmente nenhuma destas situações de ilegalidade cometidas pelo
Estado e contém um discurso construido sob inverdades acerca do processo
ocorrido e de minhas declarações, colocando-me infundadamente como mentiroso e
manipulador.
Sob um estado de cidadania precária
e de ilegalidade estabelecida, por permissão e protagonismo dos mais diferentes
agentes e instituições do Estado, quando me faço transportar (e se faz provavelmente
mais de metade da população das cidades, diáriamente), de um transporte público
coletivo, com 21 pessoas no seu interior, com a placa “LOTAÇÃO MÁXIMA: 15
pessoas”; quando é público e estabelecido o pagamento a examinadores de provas
de condução para obtenção da licença; quando se paga por fora, o aceleramento
de documentação legal violando a ordem imposta ao próprio cidadão; quando
observo agentes da Polícia de Trânsito ignorarem os estacionamentos irregulares
e instalarem-se em locais de encurralamento a condutores distraidos ou
desinformados, ao invés de monitoria do trânsito; quando sou abordado
arbitráriamente por agentes da Polícia da República de Moçambique, na maioria
das vezes que me desloco a pé, pedindo documentação sob a justificativa de
suspeita nunca argumentada; quando me deparo com o estado de chantagismo por
parte destes agentes, com o intuito de auferirem maiores rendas, para as quais
contribuo diáriamente sob forma de meus impostos, venho aqui agradecer todo o
apoio que me tem sido prestado por amigos, colegas e acima de tudo a familia
unida e educadora a que pertenço, toda a solidariedade a mim direcionada por
esta condição a que me submete a Justica e Lei que os moçambicanos aprovam ou
pelas causas a que me proponho defender.
Invadidos cada vez mais pela
indústria agroquímica e farmacêutica, intoxicamos crescentemente a população e
nós mesmos individualmente com agrotóxicos em nossos alimentos diários como o
arroz, a batata e o tomate (um dos mais afetados) ou com produtos medicinais a
que somos submetidos e condicionados pela lógica do lucro multinacional.
Diversas e relevantes práticas culturais milenares desta região submetem-se
agora à descrença e estigmatização em prol da ciência racional e de um sagrado
universal, distanciando-nos da História e origens das culturas e populações
destas terras. A planta Cannabis sativa é criminalizada sem fundamento,
enquanto o consumo de outras substâncias químicas lícitas com consequências
mortais são inclusive incentivadas e publicitadas. Outras ilícitas circulam nas
cidades de todo o território nacional sob menor repressão pública, com
exporádicas e oportunas denúncias midiáticas, sobre as quais não temos
vereditos. Cientificamente comprovado, a cannabis sativa tem utilidade
medicinal ampla, sendo apontada como dos mais eficazes tratamentos ao cancro,
mal que tem assolado consideráveis quadros do país. Ilegalizada nos EUA a
partir de 1942 e posteriormente nos demais países denominados desenvolvidos,
controlados pela Nova Ordem Mundial comandada pelo Dollar, a planta tem registo de utilização há mais de 10 mil anos para
diferentes fins e é prática cultural de diversos povos e grupos ritualísticos.
Hoje, estes mesmo países desenvolvidos já a descriminalizaram e alguns até
legalizaram. Moçambique, em constante via de desenvolvimento, mantém sua
legislação definida pelos outros.
Venho, numa dimensão mais contínua,
alertar com base neste acontecido, aos ativistas, militantes e também aos
distraidos, pois a midia para tal tem sido operacionalizada, da necessidade de
maior coerência e eficácia nas ações de crítica e construção, de uma
sociabilidade mais justa, de uma moçambicanidade mais inclusiva, de uma
cidadania de opinião e não de repressão, de uma Democracia, se assim for,
Participativa. Venho agradecer a estes militantes e ativistas, comuns cidadãos
e também notáveis personalidades, pelo apoio prestado na operacionalização de
nossas reclamações do dia-a dia, transformando-as em práticas, em ideologias e
sim, em Políticas Públicas, dignificando nossa existência.
A AZAGAIA, interveniente que
bastante admiro e com quem sempre colaborarei mediante coerência e força a que
nos habituou, agradeço muito, sem surpresas, pela firmeza e coragem com que tem
superado estes tempos de incertezas e dificuldades a que tem sido submetido.
Nele não devemos depositar nossas esperanças de mudança do estado de coisas e
sim contribuir com nossas lutas e ações ao forte grito que faz ecoar pelas
consciências dos indignados, dos apáticos e dos estabelecidos. Ao Edson da Luz,
sim, exigir a responsabilidade de defesa de seus direitos civis a um cidadão
(como assim o fez) que se pronuncia e reinvindica, colocando em arte e
palavras, sufocos e angústias do cidadão comum, ao mais alto nível das
estruturas intelectuais e de poder nacional e transnacional.
Aos artistas sugiro um urgente
envolvimento com o desenvolvimento de planos de carreira, formação profissional
e formulação de mecanismos públicos de apoio à prática artística, sob o risco
de serem colocados na prateleira do entretenimento efémero, de manterem-se
condenados a interesses de grupos privados. A arte tem um papel essencial na
percepção do meio em que vivemos, na construção e resignificação da História e
na criação de possibilidades a seguir, tendo um papel fundamental na educação e
informação de um povo. O desrespeito ao papel do artista demonstrado em
tribunal, presente em sentença deste caso, lança o alarme sobre a percepção do
papel deste ator social por parte de nossas autoridades.
A cada agente da Polícia, agradecer
as caminhadas diárias em roupas desconfortaveis, condições precárias de
trabalho e uma máquina de matar ao ombro. Apelar a que saibam lutar por sua
classe com dignidade e justeza, contribuindo para formação de um cidadão
moçambicano honesto, trabalhador e compreensivo. Afinal, para quem trabalha a
Policia? Deste lado, militarei pelas boas condições de trabalho e formação como
sempre o fiz, sem no entanto, deixar de exigir um tratamento respeitoso e
procedimentos dentro do que a Lei normatiza.
Ciente de que a Justiça nunca terá
a medida certa, farei parte daqueles que estão do lado de sua construção pela
educação e pela identidade própria, e continuarei a lutar pelo respeito e pela
dignidade.
Miguel Soares Prista
cidadão